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sábado, 17 de agosto de 2013

 D.ZEZÉ E OS GADGETS (Texto publicado em 16 de março de 2007)


 




Da infância só lembramos as coisas boas. A minha foi boa, mesmo sem iogurte, video-game ou televisão. Falando nisso, que saudades da  Dona Zezé...





 

Em 1964, (ou seria 1966?) nós conhecíamos dois lugares onde havia televisão, ambos de difícil acesso. No bairro pobre do Monte Picú, nos arredores de Fortaleza ,só uma casa ostentava essa maravilha na sala, e por motivos de perda de privacidade os donos tinham resolvido barrar a entrada da meninada. Nós, inclusive. Eu e minha turma formada pelos meus vizinhos Chiquim e Fransquim, além da Cleide, que aparecia de vez em quando, escondida, porque não ficava bem meninas brincar com meninos. Por um tempo os donos da casa com televisão até que tentaram franquear a entrada da molecada para ver o Zorro, mas desistiram depois de descobrirem que era impossível na hora do jantar comer alguma coisa com mais de vinte pares de olhos famintos olhando para eles. A outra TV era pública e ficava longe, na praça de outro bairro, conhecido como “fuloresta”. A primeira vez que fui na tal praça com meu primo “de maior”, o Manuel, a caminhada de três léguas e o público mal-educado me deixaram com terrível impressão. Dois policiais da Guarda municipal, especialmente designados para guarnecer o armário de concreto onde ficava a maravilha e manter a ordem no local, ligavam a TV ás quatro da tarde quando começava a programação e com o sol à pino não dava pra ver muita coisa no preto e branco da tela. Mesmo quem chegava cedo. Uma multidão já havia ocupado a área VIP munido de bancos,cadeiras de palha e tamboretes. Um movimento tipo avalanche começou no primeiro intervalo e não houve policia que desse jeito na onda que espalhou os bancos, tamboretes e gente pra todo lado, misturando crianças, bêbados e vendedores de refresco.
De qualquer forma, ainda era uma geração sem o vício da telinha. O que a gente gostava mesmo era de correr embaixo das mangueiras e cajueiros no quintal infinito da D. Rosa, se lambuzando de comer manga até cansar. E estávamos praticando nossa dieta favorita no dia em que a Cleide apareceu para nos contar em primeira mão, que sua mãe comprara um liqui-não-sei-o-que. Cleide era meio metida a besta porque a sua casa era uma das poucas na nossa rua que tinha energia elétrica, visto que seu pai tinha um bom emprego como chefe dos contínuos no Banco do Brasil. Estava tentando explicar com mais detalhes a novidade quando ouvimos o barulho de um motor, o que nos fez largar tudo e correr para pegar o caminhão antes que este fosse embora, posto que era uma raridade aparecer um pra gente se pendurar até a esquina onde ficava o boteco do seu Joaquim. O caminhão estava lá parado mas, vendo a multidão que se formara na porta da Dona zezé nos pareceu que havia algo mais importante acontecendo. Tinha mais gente do que no dia que “Zé Oím”, depois cognominado “robô”, caiu do cavalo em cima de uma raiz do cajueiro em frente a minha casa e se quebrou em dez pedaços . Deu tempo de ver o empregado da loja pegar a caixa com um tremendo esforço e caminhar com dificuldade entre a turba que o seguiu até a cozinha, onde colocou, num local previamente preparado, o objeto de primeira (ou última?) geração. Eu e a turma nos esgueiramos curiosos por baixo das pernas dos adultos para ouvir o que o empregado estava falando. Explicava rapidamente o funcionamento do trombolho e, olhando para a meninada ao redor, deu a recomendação de que crianças não podiam ficar muito por perto do bicho ligado, pois poderiam ser sugadas pela força centrífuga se o mesmo estivesse sem tampa.
Dona zezé quis incontinenti testar seu liquidificador com leite e bananas para os convidados e curiosos e segurou com pose de modelo a chave de liga e desliga,que mais me pareceu uma alavanca de trem. Enquanto as crianças eram afastadas, pediram para fazer silêncio e isso tornou a coisa tão melodramática que ao primeiro berro que saiu das hélices do copázio de metal, metade da audiência vazou porta afora apavorada levando tudo que havia pela frente até a rua e se metade ficou, foi petrificada de medo com o barulho que parecia vir das profundas.
D. Zezé, uma mulher à frente do seu tempo, tratou de acalmar a todos distribuindo logo a bananada para os que tinham permanecido na cozinha e todos gostaram tanto que agora relaxados, fingiam estar à vontade fazendo piadas com os que estavam de volta ainda meio desconfiados.
Mas só no dia seguinte D.Zezé pôde ver a encrenca que estava por vir, ao ver a fila que se formava na sua porta, cada vez mais longa. Toda gente conhecida do bairro apareceu querendo fazer suas experiências e misturas, carregando bananas, abacate, mangas e até jaca, triturada com caroços e tudo, o que não agradou muito porque o resultado ficou com gosto de “Emulsão Scott”. O liquidificador caiu no gosto popular, apesar das maldições do Velho “seu” Gerardo, que dizia que aquele barulho era coisa do Demo. Mas, para felicidade da D.Zezé foi um sucesso passageiro. A freqüência foi diminuindo pouco a pouco depois que comadre Cecília, que não cozinhava mais pra ninguém, descobriu que os dois baldes de bananada que sua trupe bebia no almoço e jantar além do lanche, deixara todos empazinados, cheios de bananas até os ouvidos, e ninguém conseguia evacuar porquê todos sabem que banana prende. Já com Dona Geralda aconteceu o contrário, seu pessoal preferia mamão ao leite.
Um belo dia a procura pelo eletro-doméstico cessou de vez. O gadget havia se tornado banal, porque em qualquer lugar do planeta, só nos interessam as novidades. D.Zezé pôde enfim suspirar aliviada, mas por pouco tempo. Ela pediu ao marido uma geladeira.

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