ESSA TAL DE RITA LEE
Marcos Borba
Por tradição, os estudiosos da língua preferem explorar a linguagem de consagrados escritores da literatura. Poucos se aventuram a se debruçar sobre textos de compositores da chamada Música Popular Brasileira. Possivelmente, por preconceito acadêmico, oriundo de remanescente visão elitista, autores de letras-poéticas de criatividade flagrante permanecem à margem dos trabalhos de pós-graduação.
Alguns destemidos desbravadores abriram o caminho, como o pioneiro Professor Anazildo Vasconcelos da Silva com a aclamada dissertação de Mestrado sobre o genial Chico Buarque de Holanda (A Poética de Chico Buarque, 1973).
Desde então, estudiosos vêm se dedicando à pesquisa de letras-poéticas de autores populares afamados como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Aldir Blanc, entre outros.
Mesmo com os precedentes acima, apresentar a roqueira Rita Lee com tema de dissertação de Mestrado pode ainda parecer, no mínimo, inconveniente do ponto de vista acadêmico.
No entanto, a convicção de que o trabalho criativo com a linguagem não é exclusivo da literatura, levou-me à leitura mais aprofundada da obra de Rita Lee.
A identificação com a visão de mundo, o humor e o erotismo presentes nas letras da compositora influíram sobremaneira na sua escolha como objeto de análise.
O que antes se apresentava apenas como intuição ¾ a riqueza de recursos lingüísticos (conscientes ou inconscientes) ¾ confirmou-se através de análises detalhadas das letras do corpus em questão. Os temas aparentemente “simples” e as letras (poemas) enganosamente despretensiosas ¾ e que tanto sucesso alcançam ¾ levaram-me a debruçar, com uma visão mais acurada, sobre este fenômeno da nossa cultura popular.
Apesar de não ter pretendido empreender uma análise definitiva e completa da obra, acredito ter ressaltar alguns dos inúmeros recursos estilísticos manipulados, não raro com maestria, pela compositora para reforçar e realçar a mensagem.
Reitero que se tratou, sem sombra de dúvidas, de uma pesquisa ousada devido à imagem de roqueira da artista. No entanto, uma aproximação, sem preconceito das composições, revelou a ainda pouco observada criatividade da autora.
Além disso, os temas do prazer e do humor e suas manifestações (o cômico, a ironia, o sarcasmo) surgem recorrentes na obra desta criativa e irreverente cronista de nosso tempo.
Em conclusão, parece-me inquestionável o pleno domínio de Rita Lee dos recursos lingüísticos mais variados, objetivando realçar a mensagem de suas letras-poéticas.
Por trás de textos que falam do cotidiano insano das grandes cidades, descobrimos o homem angustiado, (“... e se não me engano, no próximo ano vai vir / aquela dose de cicuta que eu / vou ter de engolir / como se fosse um suco de fruta, / como se fosse eu a grande maluca / corre-corre-corre / uh, uh, uh -
Corre-corre), devido a pequenos imensos conflitos existenciais, que prefere rir das mini-desgraças do dia-a-dia a se desesperar com a ausência de possibilidade de solução. (“... eu juro que é melhor / não ser um normal / se eu posso pensar que Deus sou eu / Sim, sou muito louco / não vou me curar / já não sou o único / que encontrou a paz / Mas louco é quem me diz. / E não é feliz. / Eu sou feliz!”-
Balada do louco).Encontrar motivos para não desistir de procurar a felicidade, que insiste em fugir de suas (nossas) mãos, parece ser a meta dessa paulista que nos ajuda com um humor sarcástico e um culto do prazer (libertos de culpas e preconceitos que teimam em nos reprimir) a suportar um mundo ainda infinitamente distante do ideal. (“... Um belo dia vou lhe telefonar / pra lhe dizer que aquele sonho cresceu / No ar que eu respiro /Eu sinto prazer / de ser quem eu sou / de estar onde estou / Agora só falta você!” -
Agora só falta você).
Retirar das tristezas do mundo, alegrias (“... Pra que sofrer com despedida?/ Se quem parte não leva, nem o sol, nem as trevas / E quem fica não esquece / tudo que sonhou...”-
Cartão Postal); das injustiças sociais, lições de vida (“... Agora não é tempo da gente se esconder. / Tenho mais é que botar a boca no mundo / Como faz o tico-tico / quando quer comer. / Essa fome é vontade de viver...”-
Com a boca no mundo); das agruras, motivos de riso (“... Se perder mais um jogo o outro amor / É sinal que a sorte me deixou em xeque-mate / Livre outra vez, no xadrez!...”-
Livre outra vez); do medo da morte, lirismo (“... Se Deus quiser / Um dia eu morro bem velha. / Na hora H quando a bomba estourar / Quero ver da janela / E entrar no pacote de camarote / E tomar banho de sol, banho de sol, banho de sol...”-
Baila comigo). Tudo isto temperado com ritmos que vão do rock à salsa, passando por boleros, bossa nova, entre outros, fazendo em suas próprias palavras “amor na melodia” com o marido, músico e parceiro Roberto de Carvalho.
O trabalho de garimpagem com as palavras desvenda uma poetisa instrumentalizada com todos os recursos (morfossintáticos, semânticos e estilísticos) para retirar dos signos verbais deslumbrantes imagens que nos encantam pelo inusitado aliado à aparente simplicidade. (“... Mais um dia a menos / Menos um sonho a mais / Tanto faz / Ah, como tanto fez / Ah, tanto faz / Ah, como tanto fez / Desde que eu viva em lúcida embriaguez / Desde que eu passe por momentos de prazer / Mesmo que eu fique caçador de aventuras / Grande amante do sol / Caçador de aventuras / Grande amante do sol...”-
Caçador de aventuras)
CLÁSSICOS DO ROCK BR
RITA LEE -CAÇADOR DE AVENTURAS (1976)